A explosão da bolha imobiliária nos EUA, no tocante à sua origem, foi retratada em A Grande Aposta (The Big Short, 2015). Basicamente, bancos e outras instituições do mercado financeiro criaram uma cascata de hipotecas que eram revendidas mais de uma vez para financiar outras casas e assim por diante criando uma corrente de dívidas sobrescritas com elos frágeis. Havia crédito fácil para todos, inclusive para os que o mercado chama de N.I.N.J.A.S (no income, no job, no assets), gente que não tinha nenhum tipo de renda ou garantia. As autoridades reguladoras do sistema financeiro, por várias razões, não intercederam até que o desastre aconteceu e o governo teve de interceder para evitar uma corrente de falência generalizada dos bancos.
Em 99 Casas (99 Homes, 2014) vemos as consequências da crise da bolha imobiliária para o lado mais frágil da economia, a classe trabalhadora. Dennis Nash (Andrew Garfield) atua na construção civil, um setor que também colapsou em consequência da crise. Sem trabalho, Nash não conseguiu pagar as parcelas de sua hipoteca. Após recorrer à justiça para tentar ganhar prazo mas perder a causa, recebe a visita de Rick Carver (Michael Shannon), um corretor de imóveis e especulador que trabalha para os bancos e outros clientes realizando ordens de despejo.
Sem nenhuma perspectiva de trabalho e morando com a família em um pequeno quarto, Nash aceita trabalhar para Carver fazendo inicialmente pequenos reparos nas residências desocupadas mas logo entrando em esquemas maiores envolvendo pequenas trapaças para aumentar os ganhos. Depois ele mesmo passa a participar de ações de despejo.
É um caso clássico de inversão de papéis em uma vitória total de um sistema injusto que reafirma que o grande sonho americano funciona apenas para os vencedores, como o personagem do corretor inescrupuloso enfatiza em um momento digno de Gordon Gekko: “Os Estados Unidos não ajudam os perdedores”. Carver é o agente intermediário que sabe como o sistema funciona e consegue se movimentar dentro dele.
A cena inicial do despejo de Nash e sua família, formada pelo filho, Connor (Noash Lomax), e sua mãe, Lynn (Laura Dern), consegue passar toda a angústia e sofrimento que tal ação provoca. Ser retirado de seu lar, sob coerção da polícia e olhares dos vizinhos é uma violência espiritual e psicológica devastadora. As pessoas reagem de maneiras imprevisíveis, ainda que dentro de um padrão, e o filme faz questão de apresentar várias ações de despejo. Na primeira cena desse tipo, um morador simplesmente se matou. Em outra casa, os antigos ocupantes a deixaram imunda, espalhando fezes pelos cômodos e cultivando mofo. A maioria simplesmente tenta negar a realidade quando ela bate à porta, mas terminam por aceitar. Assim como Dennis, o espectador nada pode fazer, a não ser observar vidas sendo demolidas.
Se no seu roteiro há um personagem perverso, amoral, psicótico, frio e insensível, pode chamar o Michael Shannon para interpretar. Mas o Rick Carver do Shannon em 99 Casas não é apenas o estereótipo do americano ganancioso. Carver é cínico e frio, mas não completamente estereotipado. O roteiro dedica um tempo para mostrar que sua personalidade também foi moldada por uma série de acontecimentos pregressos. Após ser triturado pelo sistema, aceitou a vida como se apresentou a ele se tornando insensível ao sofrimento alheio. No final, apesar dos deslizes legais, a lei está do seu lado e ele até abre oportunidade para outros que estejam dispostos a se tornarem parte desse sistema, tipo um contrato de venda de alma: “Quando trabalha para mim, você é meu”.
Nash tenta ganhar o suficiente para recuperar sua casa, mas esconde de sua família a origem de seus recursos. O personagem guarda um contraditório sentimento de culpa que o corrói e tenta se convencer que faz aquilo por sua mãe e filho em uma realidade que assume o “cada um por si”. Seu conflito interno vai crescendo até se deparar com um desafio muito maior que definirá de vez que tipo de homem ele é capaz de se tornar para sobreviver.
99 Casas é um drama intenso e realístico que denuncia um sonho americano demolido. A despeito de a crise ter sido superada, ao menos para os grandes do sistema financeiro, ainda restam reminiscências da hecatombe imobiliária que agora, com a pandemia do coronavírus, parece se agravar no setor. O último episódio da última temporada de Patriot Act da Netflix, “O que acontece se eu não puder pagar o aluguel?”, apresenta o drama dos cidadãos americanos que não conseguem mais pagar o aluguel por consequências diretas e indiretas da pandemia, apresentando como o sistema judiciário lida com esses casos de forma bastante semelhante ao que o filme apresenta.
99 Casas (99 Homes, 2014)
Diretor: Ramin Bahrani
Elenco: Andrew Garfield; Michael Shannon; Laura Dern
Gênero: Drama
Duração: 1h52min